ESCRITURAS

Quem toma gosto pela palavra quer ler mais e quer também escrever. Roland Barthes assinalou uma vez que há livros legíveis, que se oferecem à leitura e nela encerram sua contribuição ao nosso prazer e mesmo fruição. Contudo, há livros escrevíveis, que não nos abandonam sem que tenhamos tomado a palavra para lançá-la mais adiante. Quando li essa passagem, lembrei-me de um poema de João Cabral de Melo Neto intitulado " Tecendo a Manhã". Ali ele diz que "um galo sozinho não tece um manhã". É preciso que ele lance seu canto e que outro o recolha e o lance ainda adiante. Assim, no entrecruzar de fios dos cantares, o sol desperta e a manhã se estende como um tecido sobre a terra. Acho que a leitura entretecida forma o leitor quando ele finalmente tece sua leitura/escritura barthesiana, e no gesto traça seu próprio perfil e põe sua assinatura, finalmente.
Um leitor de textos em qualquer linguagem sonha em colocar sua própria leitura em um suporte para tornar-se autor. Assim, as duas pontas do fio se aproximam e resultam no diálogo que, mesmo imperceptivelmente, todos os textos mantêm entre si. Essa trama é latente, mas será o leitor que a fará evidente. Dela desponta um fio que ele puxa para realizar sua produção pessoal, increvendo-se no seu contexto, na história. Por isso, a escrita depende de seus antecedentes-muita leitura, muita pesquisa-para que o gesto de criar nasça de uma falta que ainda se instale, um querer dizer que não se reconhece como excesso, mas como suplemento que interroga, desvia e demanda de forma inesperada que o receptor não se cale.
Esse exercício, longe de ser mecânico, como tarefa escolar obrigatória, desborda o exterior e se impõe como demanda interna: o leitor quer desenhar, dizer, pintar, musicar, dançar, arquitetar o novo, como fruto de um desejo despertado tão súbito que os antigos falavam em inspiração de musas. Ver um filme, conhecer uma cidade a pé, contemplar um quadro, ler um livro podem ser práticas de leitura que façam o receptor "lembrar-se" de que tem algo mais a dizer, mesmo que sejam perguntas, discordâncias, devaneios. A escritura se propõe como comentários, ensaios, críticas, mas também como novos contos, nova ficção, criação. As crianças não resistem diante do novo e insistem em algo mais novo. Os adultos temem se expor com frequência,

( Em Tecendo um Leitor: Uma Rede de Fios Cruzados, de Eliana Yunes, Ed. Aymará, pp 66-67)